Afeganistão em poucas palavras - Por Gustavo Rocha
Análise sobre a tomada de poder no Afeganistão pelos Talibãs.
Por Gustavo de Andrade Rocha*
O Afeganistão possui uma história longa, rica e complexa. Tanto que é apelidado de “Cemitério de Impérios”. Mas, para cumprir a promessa do título, iremos nos ater apenas aos eventos contemporâneos que ajudam a explicar a tragédia que está sendo noticiada mundialmente, nos últimos dias.
Em resumo, estamos assistindo às consequências da retirada do que restava das tropas estrangeiras que ocupavam o território Afegão desde 2001. Essas tropas estavam lá desde que foi iniciada uma invasão e posterior ocupação do país, liderada pelos Estados Unidos da América (EUA). Para entender o que está acontecendo, precisamos recapitular alguns eventos de forma rápida:
Em 11 de setembro de 2001, os EUA são vítimas de uma série de atentados terroristas realizados por uma organização fundamentalista islâmica chamada Al Qaeda. Osama bin Laden, um príncipe saudita renegado, com histórico de treinamento na CIA para lutar contra os Soviéticos (durante a Guerra Fria), aparecia como o líder deste grupo, que tinha o terrorismo como sua principal arma. Como ápice desses atentados, dois aviões comerciais, tomados por terroristas, atingiram as duas torres do World Trade Center em Nova York. Após os impactos, as duas torres colapsaram. Elas eram um dos maiores símbolos do país e do ocidente. Outro avião, que seguia em direção ao famoso prédio do Pentágono (sede do aparato militar do país) falhou por resistência dos reféns, que derrubaram o avião antes do alvo, em um ato de aparente heroísmo (o que gerou o filme “Vôo United 93”).
Após essa fatídica data, o então presidente do país, George W. Bush inicia uma campanha chamada “Guerra ao Terror”. Entre seus atos, o país iria invadir dois países, Afeganistão e Iraque. Além destes, o então presidente nominaria outros países como membros de um “eixo do mal” durante discurso no capitólio. Apesar da surpresa com o discurso sobre esse “eixo do mal”, a opinião pública respaldou a invasão do Afeganistão.
O Afeganistão foi o primeiro alvo. Era uma resposta direta pelo “11 de setembro”, pois havia suspeitas de que o líder da Al Qaeda estava refugiado na região montanhosa do país, e lá havia feito uma infraestrutura de treinamento para sua organização. Tudo com a anuência de um grupo que dominava a maior parte do território do país e governava as regiões dominadas (incluindo a capital e as principais cidades) com uma interpretação extremamente radical da lei islâmica, chamado Talibã.
Ainda em 2001, os Estados Unidos da América, com a ajuda de alguns membros da OTAN, especialmente o Reino Unido, invadem o país. Iniciam a chamada “Segunda Guerra do Afeganistão”. Os objetivos declarados dessa invasão eram encontrar Osama bin Laden, destruir a Al Qaeda, e remover o governo fundamentalista Talibã por encobrir e financiar grupos terroristas.
Como mencionado, esta foi a segunda guerra no país. Anteriormente, durante a Guerra Fria, houve uma Primeira Guerra do Afeganistão, onde a extinta União Soviética invadiu o Afeganistão. Os EUA, sem poder interferir diretamente, armaram e treinaram grupos insurgentes, entre eles o próprio Talibã. Esta primeira invasão acontecia a pedido do governo do país, que enfrentava dificuldades em combater os diversos grupos insurgentes, especialmente os fundamentalistas. Esta guerra aconteceu entre 1979 e 1989. Com a saída das tropas soviéticas, e o enfraquecimento do principal grupo insurgente anterior, os Talibãs pouco a pouco, controlaram o país.
Voltando ao atual conflito, em 7 de outubro de 2001, menos de um mês após os atentados, as tropas lideradas pelos EUA iniciam a invasão do país. A invasão em si é rápida, e resulta na queda do “Emirado Islâmico do Afeganistão” (como era chamado o governo Talibã). A rapidez e o sucesso da invasão não surpreenderam, já que foram aplicados armas e equipamentos de última geração, com um dos maiores e mais bem preparados efetivos militares da história. Contra uma milícia equipada com armas e munições majoritariamente da guerra fria, e equipamentos sucateados.
Após a bem-sucedida invasão, iniciavam-se as partes mais difíceis da missão. Em resumo, as tropas enfrentariam insurgentes por anos até estabilizar o país. Encontrar Osama bin Laden só aconteceria em maio de 2011 (10 anos após a invasão). Depois da estabilização do país, iniciou-se o período de reconstrução, especialmente com a criação de instituições de governo nos moldes ocidentais, e o estabelecimento de um regime democrático, com uma constituição e um governo eleito. Também houve, nesse período, um esforço para treinar forças armadas e de polícia. Toda a operação, custou um orçamento estimado em cerca de dois trilhões de dólares apenas para os EUA.
Já no primeiro governo de Barack Obama (na realidade, ainda na campanha presidencial), começou-se a discutir seriamente a retirada das tropas do Afeganistão. Entre os motivos, estavam o já altíssimo orçamento do esforço civil-militar, o número de baixas de militares do país, o desgaste perante a opinião pública, etc. Porém, por uma série de dificuldades (incluindo a falta de confiança nas forças armadas e instituições locais), o processo foi lento e frequentemente postergado.
Agora, após os dois governos Obama, uma aceleração do processo durante a gestão Trump, e o início da gestão Biden, parecia que o momento para retirada militar estrangeira havia chegado. Porém, à medida que as tropas da coalizão se retiravam, os Talibãs voltaram a controlar diversas áreas do país. Eles nunca foram totalmente derrotados, mas tinham ficado restritos a regiões isoladas do território afegão. Avançaram pelo país praticamente sem resistência. Contando, inclusive, com o descontentamento do povo e das lideranças tribais em relação ao governo do país. Em menos de uma semana, chegaram à capital, Cabul. Todo esse movimento, fez com que as embaixadas estrangeiras (especialmente a dos EUA) retirassem seu pessoal civil às pressas. Tal foi a urgência, que após a retirada dos últimos 2.500 soldados, os EUA precisaram reposicionar 3.000 militares (número que depois chegou a 5 mil) para ganhar tempo para a retirada.
Ao passo que funcionários civis das embaixadas são retirados, cidadãos que colaboraram com a invasão também deveriam ser retirados (e deverão, ao menos em parte). Porém, um número muito maior de afegãos se deslocam para postos de fronteiras e para o aeroporto ainda controlado por tropas do ocidente, para clamar por uma fuga.
Afinal, estão prestes a presenciar a volta de fundamentalistas ao poder. O que gerou as cenas tristes de desespero de hoje (16/08/2021). Há um forte sentimento de que os cidadãos das principais cidades, especialmente da capital, serão tratados como colaboracionistas. Além disso, pessoas (especialmente as mulheres e os mais jovens) temem os retrocessos em termos de direitos humanos que serão levados a cabo pelos fundamentalistas. Nesse sentido, ninguém espera que seja diferente.
Por fim, após 20 anos da “Guerra do Afeganistão”, os EUA e os aliados saem derrotados. A saída às pressas, acaba fazendo um paralelo impossível de ignorar com o Vietnam. Lá, em Saigon (capital do Vietnam do Sul, na época da guerra), os EUA também precisaram retirar seu pessoal civil de forma desesperada, resultando em imagens semelhantes às desta semana. A principal diferença, é que no Vietnam, a pressa acontecia pela derrota militar das tropas americanas no Vietnam do Sul e o avanço de Ho Chi Minh. Desta vez, um inimigo dado como derrotado, reassume o país no lugar do tão alardeado “governo democrático” arduamente construído por Washington, simplesmente pela retirada das tropas de ocupação. Quase não houve resistência local (há relatos até de tropas nacionais que se renderam por falta de comida). No final das contas, uma derrota é sempre uma derrota!
Resta saber como a comunidade internacional irá lidar com a situação. Se haverá reconhecimento do novo governo do país. Se haverá articulação por uma resposta humanitária no país. Como o próprio governo irá lidar com a comunidade internacional.
*Gustavo Rocha
Doutor em ciência política, professor do curso de relações internacionais da Asces-Unita e pesquisador da UFPE